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Precatório não é um assunto apenas para advogados (por Francis Campos Bordas)

A absoluta incongruência do calote dos precatórios e o prejuízo ao erário e aos credores

Francis Campos Bordas (*)

Esse texto não se destina a reprisar os argumentos jurídicos já suficientemente apresentados ao STF sobre a inconstitucionalidade do Calote dos Precatórios. O leitor que esperamos alcançar é o cidadão detentor desse precatório, em especial os servidores públicos e segurados do INSS, além de colegas advogados credores de créditos igualmente alimentares. Com isso, esperamos contribuir com informação ao cidadão, seja do credor atingido, como também o contribuinte que arcará com o prejuízo causado por conta do aumento da dívida pública.

A Emenda Constitucional 114 criou um limite para pagamento das dívidas judiciais – precatórios, a partir de 2022 até final de 2026. Usou como critério – aleatório, pois sem qualquer demonstração de seu porquê – o valor gasto em 2016 com dívidas judiciais. Com isso, já em 2022 deixaram de ser pagos cerca de 50% dos precatórios inscritos no orçamento, além de ter ocorrido quebra da ordem de preferências entre credores (GENRO & BORDAS, 2023¹), fazendo com que créditos tributários de empresas (últimos da fila de prioridade) fossem pagos no RJ ao passo que servidores não recebessem os créditos alimentares na região sul. O espaço aberto no orçamento de 2022 em razão da postergação desses pagamentos não significou economia alguma, pois aquele dinheiro foi simplesmente remanejado para outras despesas (AFONSO, 2023 ²) que o Executivo julgava necessárias (auxílio brasil, benefícios previdenciários, financiamento de campanha eleitoral, emendas parlamentares, etc. ³).

Essa operação é de manifesta inconstitucionalidade, já questionada através de duas ações diretas junto ao STF, cujo relator é o Ministro Luiz Fux, ambas aguardando julgamento desde o final de 2021, lembrando que essa demora vem gerando prejuízo ao erário, mês a mês.

Precatório é uma despesa já feita, cujo pagamento é postergado para mais tarde. Em geral, em relação ao público-alvo desse texto, essa despesa envolve diferenças de proventos, vencimentos, benefícios previdenciários, cujo pagamento não foi realizado a tempo e que demandou uma longa marcha judicial até a inscrição do precatório no orçamento. Prova cabal de que é uma despesa paga em atraso, que no momento da efetiva liberação desses valores, os credores pagam imposto de renda calculado de maneira retroativa, através da sistemática dos Rendimentos Recebidos Acumuladamente (RRA), onde são considerados mês a mês as diferenças do período do cálculo dos atrasados. Ou seja, precatório é uma despesa realizada no passado e cujo pagamento é futuro.

É, portanto, uma incongruência estabelecer um “teto” para pagamento de uma despesa que já foi feita. E essa falsa de lógica denuncia a própria abusividade da EC 114, pois, “despesa é despesa” e “dívida é dívida”. Não se pode transformar uma dívida judicial em despesa, pois ele sempre será uma dívida, cujo pagamento é garantido através de emissão de um título de crédito ao cidadão que se chama “precatório”.

Sendo um título de crédito, o precatório tem a mesma natureza de uma compra a crédito, praticamente um cartão de crédito. E como tal, quanto mais se posterga o pagamento da fatura do cartão, mais aumenta a dívida, em razão dos juros. O mesmo ocorre com o adiamento do pagamento da dívida judicial, pois será gradativamente formada uma enorme bola de neve estimada entre R$ 200 a 348 bilhões em 2027, quando, em tese se esgota o prazo de vigência desse novo regime especial e transitório de pagamento de precatórios federais.

Cabe lembrar que a outra categoria de dívida federal segue sem qualquer restrição e seu pagamento cada vez mais garantido: referimo-nos às dívidas mobiliárias, ou seja, o valor que o país paga ao mercado financeiro credor de títulos da dívida pública e seus juros. Portanto, ao retirar a garantia e estabelecer um teto para pagamento de precatórios, o governo Bolsonaro deixou como herança:

  • Incerteza para os credores
  • Aumento do passivo de dívidas do setor público
  • Prejuízo da sustentabilidade das contas públicas
  • Disparidade de tratamento em relação às outras dívidas, para as quais se admite inclusive emissões de títulos para angariar receita uma enorme dívida que mês a mês aumenta.

Fala-se muito, atualmente, em um novo arcabouço fiscal em substituição ao antigo modelo trazido por Temer com a PEC do Teto dos Gastos (EC 95, de 2016), modelo esse alicerçado na ideia de metas e resultados.  Seria, grosso modo, uma substituição dos “tetos” pelos “resultados e metas”.  A PEC da transição (emenda 126) de fato revogou o chamado de teto  de gastos; salvo um:  manteve o teto para pagamentos de dívidas judiciais.

Logo, a incongruência da EC 114 ao  transmutar precatórios da categoria de “dívida” para “despesa” apenas se agravou, mostrando-se cada vez mais incoerente e evidente a inconstitucionalidade do calote dos precatórios. Já era um erro conceitual enquadrar a limitação do pagamento de precatórios a um teto; e agora, que não se fala mais em teto, o pagamento segue limitado.

O desrespeito com credores já foi longe demais!

[1] BORDAS, Francis e GENRO, Tarso. Critério de divisão de tribunais da verba para precatórios causa prejuízo a credores. Consultor Jurídico, 2023. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-07/genro-bordas-criterio-divisao-entre-tribunais-verba-precatorios-causou-prejuizo-aos-credores.  Acessado em 13/5/2023.

[2] A motivação para a postergação dos precatórios, como se observa, foi abrir espaço no teto de gastos para outras despesas – e não necessariamente aprimorar sua sistemática de pagamentos. Na realidade, o efeito foi contrário, criou-se um ambiente de incerteza para os credores e um risco de desequilíbrios fiscais para a próxima gestão. (AFONSO, José Roberto Rodrigues – PARECER ECONÔMICO SOBRE IMPACTOS FISCAIS DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS N° 113 E 114, DE 2021, A RESPEITO DE PRECATÓRIOS DA UNIÃO. Juntado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro em sua manifestação como amicus curiae na ADI 7047 – STF.

[3]  Relatório produzido pelo Instituto Fiscal Independente, Senado Federal. 

(*) Advogado, integrante do CNASP – Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos, membro da Comissão Especial de Precatórios da OAB/RS e Membro da AAJ – Associação Americana de Juristas, Rama Brasil. 

Texto originalmente publicado no site Sul21.