A prioridade às avessas em precatórios alimentares
Por Francis Campos Bordas
Os que viajam de avião conhecem a frase: “Daremos início ao embarque. Convidamos, inicialmente, os passageiros com prioridade por lei”.
O pagamento de precatórios também deve obedecer a uma ordem de preferência. A Constituição garante, no § 1º do art. 100, que “os débitos de natureza alimentícia serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos” (…). A expressão “todos os demais” é inegociável.
Trata-se, portanto, de uma prioridade concedida a esses credores na fila dos que têm créditos judiciais a receber. Existem outras prioridades definidas em lei, como, por exemplo, para o embarque em voos de passageiro idoso, ou com dificuldades. Não importa a maneira como foi comprado o bilhete aéreo, esse grupo embarca antes.
Causaria estranheza se uma empresa aérea convidasse para embarque em grupos e subgrupos conforme a modalidade de compra da passagem. Ficaria assim: “Chamamos inicialmente para embarque os passageiros que compraram o bilhete pelo aplicativo do celular, dando-se preferência às prioridades por lei e, em seguida, embarcarão os demais passageiros do grupo”.
Depois de embarcado o primeiro grupo, seria feita nova chamada: “Convidamos agora os passageiros que adquiriram seus bilhetes pelo site da empresa, tendo preferência os idosos e em seguida os demais”.
E seguiria a fila: “Convidamos, agora, para embarque os passageiros que compraram no balcão da empresa, preservando as prioridades por lei”.
E os passageiros que compraram através de agências de viagem seriam os últimos a serem chamados.
Nesse hipotético voo há um grupo de senhoras idosas que comprou os bilhetes na agência de viagem de sua cidade, que assistiu aos demais passageiros embarcar – inclusive aqueles sem prioridade alguma – que compraram pelo aplicativo, pelo site etc. Para piorar: “Deu overbooking”, ou seja, foram vendidas mais passagens do que os assentos disponíveis.
Síntese: As senhoras não tiveram respeitada a prioridade por lei e não embarcaram, sendo prometido um novo voo, onde ocorrerá o mesmo critério de chamada para embarque.
Esse exemplo kafkiano representa o que ocorreu – no plano real – com os credores de precatórios alimentares prioritários no orçamento de 2022, em especial das regiões Sul e Nordeste, MS e SP.
O teto para pagamento de precatórios (calote) herdados do governo anterior fez com que o Judiciário recebesse apenas uma parte do previsto no orçamento para pagamento de dívidas. O critério usado para ratear esse valor insuficiente foi a divisão na proporção do total de precatórios expedidos por cada tribunal, não importando se dentre eles havia uma repartição maior ou menor de credores prioritários.
Isso fez com que o TRF-2 (ES e RJ) tenha recebido verba suficiente para pagar os precatórios alimentares e alguns precatórios comuns, ou seja, os últimos da fila de preferências. Já a verba destinada ao TRF-4 (Região Sul) foi insuficiente para pagar os precatórios alimentares daquele ano. Situação similar ocorreu no TRF-3 (MS e SP) e no TRF-5 (Nordeste).
Ou seja, credores prioritários de algumas regiões não receberam seus créditos e algumas empresas credoras de precatórios comuns (últimos da fila) receberam seus créditos no Rio de Janeiro…
O critério de rateio da verba em 2023 foi o mesmo usado em 2022, o que fez com que o TRF-1 e o TRF-2 tenham pago “os seus precatórios” represados do ano anterior. Assim quitaram precatórios comuns no valor total de R$ 9,7 bilhões. Por outro lado, o estoque de precatórios alimentares de 2022 nos TRFs 3, 4 e 5 ainda apresenta hoje um saldo devedor aproximado de R$ 2,85 bilhões. Logo, houve nova preterição de credores de precatórios alimentares em relação aos precatórios comuns inscritos na mesma proposta orçamentária. [1]
Questionados, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal informaram que as prioridades se aplicam a cada uma das listas de cada tribunal, separadamente. Assim fazendo, distinguiram os credores conforme o tribunal responsável por seu processo, tal qual a forma como foi comprado o bilhete aéreo…
No caso, o CNJ equipara-se ao funcionário da sala de embarque. Sabendo do overbooking, ao invés de chamar todos os passageiros/credores prioritários de uma vez, separou os grupos conforme a modalidade de compra do bilhete, praticando uma ordem de prioridade às avessas. Tem aparência de prioridade, mas não é.
Ah! Até hoje aquele grupo de senhoras idosas aguarda na sala de embarque – da mesma forma como grande parte dos precatórios alimentares de 2022.
[1] Fonte: https://www.cjf.jus.br/publico/rpvs_precatorios/ – acessado por último em 24/9/2023.
Notícia originalmente postada no site www.espacovital.com.br
Imagem: www.espacovital.com.br