Reforma administrativa: reflexões sobre o desmonte do serviço público
Hoje iniciamos uma série de publicações sobre a reforma administrativa (PEC 32) proposta pelo ministro da economia Paulo Guedes em tramitação no Congresso Nacional. A reforma é aguardada por diversos setores da sociedade como solução para uma “administração pública eficiente”.
Mas o que realmente está por trás dessa reforma? Será que a PEC 32 visa organizar o funcionamento das instituições públicas com medidas voltadas para melhor prestação do serviço público como se espera de uma reforma, em especial nesse período da pandemia em que o serviço público se revelou tão importante? Ou visa fragilizar os serviços públicos e abrir espaço para que a iniciativa privada se aproprie e lucre sobre as necessidades da população? Por que a reforma administrativa deve ser amplamente discutida pela sociedade brasileira? No Brasil, em 2019, 70% da população não teve acesso a plano de saúde ; 80% dos alunos do ensino fundamental e médio são atendidos por escolas de rede pública .
Nossa intenção é promover reflexão e discussão sobre essa proposta que afetará diretamente a sociedade brasileira.
1- Precarização do serviço público
A reforma administrativa usa o discurso de “combate a privilégios dos servidores públicos”. Contudo, o tema principal da reforma administrativa não são as alterações que atingirão os servidores públicos, mas a implementação do Estado Mínimo que impactará diretamente na prestação dos serviços públicos tais como saúde, educação, segurança, lembrando que a reforma não afetará o Poder Legislativo, o Judiciário e as Forças Armadas. Ou seja, os efeitos serão sentidos diretamente no dia a dia do cidadão.
A PEC 32 segue a ideologia dos que acreditam que a iniciativa privada seria capaz de dar respostas às demandas sociais, especialmente dos mais carentes, quando se sabe que o setor privado visa o lucro e não o atendimento universal das necessidades da sociedade. Restam muitas dúvidas e inseguranças sobre esse entendimento: [1] A iniciativa privada terá interesse em desenvolver pesquisa ou prestar serviço de saúde na cura de doenças que não lhe darão retorno lucrativo? O setor privado investirá em áreas em que o usuário não tem dinheiro para pagar o serviço? Claro que não. Mas mesmo que a iniciativa privada seja contratada pelo Estado (com dinheiro dos nossos impostos) para prestar esses serviços, será que funcionará? Como será feita a fiscalização desse investimento? Ora, sendo natural que o setor privado queira lucrar, é evidente que o valor a ser repassado pelos cofres públicos cubra os custos e o lucro. Logo, é de se esperar que custe mais caro. Além disso, baratear os custos é um modo tradicional para aumentar o lucro. Logo, é grande a probabilidade de que tenhamos um serviço de qualidade ruim. Vários países do mundo que adotaram esse modelo voltaram atrás, pois serviu apenas para enriquecer pequenos grupos. O Chile é um modelo próximo e atual que representa o fracasso desse modelo.
2- A reforma administrativa ignora a realidade dos servidores públicos do Brasil
O Governo propaga a imagem falsa e generalizada de que os servidores públicos são privilegiados, recebendo altos salários. De acordo com as informações disponíveis pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística E Estudos Socioeconômicos – a maior parte dos servidores públicos (57%) tem rendimentos na faixa de até 4 salários-mínimos, ou seja, de R$ 3.816,00 (dados de 2018). No que tange especificamente ao funcionalismo público municipal, o percentual dos que auferem este rendimento corresponde a 73%, faixa na qual estão concentrados 56% dos servidores estatutários do Brasil . Ou seja, a maioria dos servidores públicos no Brasil está principalmente nos municípios que, em geral, recebem até 4 salários mínimos. A proposta, se aprovada, impactará diretamente as políticas públicas básicas e fundamentais, tais como educação e saúde, que são executadas, em sua maior parte, por servidores municipais que estão mais próximos da população e da realização de uma efetiva política pública.
Por outro lado, a reforma não mexe no Judiciário, militares e Legislativo. Cabe lembrar, por exemplo, que a remuneração média no Judiciário é 5 vezes a do Executivo, segundo dados do IPEA (Atlas do Estado Brasileiro, 2019). Porém, como o Judiciário não pode ser privatizado, ele é deixado de lado, o que mostra que a real intenção não é otimizar o serviço público, mas privatizá-lo, visando o lucro.
3- O problema financeiro do País não está no serviço público
“O Estado está falido e os servidores custam caro ao País”. Essa é a alegação simplista do Governo para defender a reforma administrativa. Contudo, essa não é a realidade brasileira. O Brasil é um dos países que tem a menor proporção entre os empregados públicos por habitantes. Num comparativo com os países da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – verifica-se que enquanto tais países têm 21,3% da sua população economicamente ativa empregada em serviços públicos, no Brasil, esse índice é de 12,1% nas três esferas de governo. Essa taxa ultrapassa 34% em países como Dinamarca e Noruega .
Além disso, o que custa caro para o Brasil, historicamente, não são os servidores públicos, mas os excessivos gastos financeiros com o pagamento de juros e amortizações da chamada dívida pública .
4- A estabilidade é importante para o serviço público e para sociedade
É importante lembrar que a estabilidade tem como intuito evitar demissões em razão de interesses políticos, partidários e eleitorais. A estabilidade não é uma proteção para o mal servidor, mas sim uma proteção do cidadão contra o mal gestor. Já há legislação que prevê penas aos servidores, tais como a pena de demissão, para casos de crimes contra a administração pública, abandono de cargo, improbidade administrativa, lesão aos cofres públicos, receber propina, entre outros. Se aprovada a reforma, a maior parte dos servidores públicos não terá estabilidade, a qual ficará restrita apenas aos cargos típicos de estado a serem definidos em futura legislação. Ou seja, os servidores públicos em geral estarão vulneráveis às pressões político-partidária comprometendo profundamente a prestação do serviço público. Além disso, estando o servidor exposto às vontades do governo de plantão, o cidadão estará ameaçado de que o cumprimento da lei seja deixado de lado para atingir interesses escusos. Assim, ficaremos sujeitos a fiscalizações persecutórias, atividades danosas ao meio ambiente natural, histórico e paisagísticos poderão ser autorizadas com mais facilidade, entre outros diversos riscos.
5- Reforma administrativa é antidemocrática e traz a volta do apadrinhamento político por CC
A PEC afasta, ainda, a obrigatoriedade de funções de confiança serem ocupadas por servidores de cargo efetivo (concursados). Apesar de reiterar o princípio da impessoalidade, contraditoriamente, a PEC permite que atribuições estratégicas, gerenciais ou TÉCNICAS sejam executadas por pessoas ocupantes de cargos de liderança e assessoramento, cujo provimento não se dará pelo concurso público. Aqui é flagrante a violação aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e igualdade no acesso aos cargos públicos basileres do estado democrático de direito. Flexibilizar o rigor da seleção para ingresso no cargo público implica em aumentar as chances de que pessoas menos qualificadas sejam escolhidas, o que é justamente o oposto do que esperamos da atividade pública, a qual deveria sempre se pautar pela opção da excelência do serviço prestado.
6- Concentração do poder no executivo
Outro ponto a destacar é a maior concentração do poder no Presidente da República sobre a formatação do estado, suas prioridades e distribuição da força de trabalho.
Historicamente, sempre que se decide pela criação de uma autarquia (como o INSS ou as universidades, por exemplo) o Executivo precisa de uma aval do parlamento, o mesmo para poder exintgui-las, transforma-las ou fundi-las com outras. A PEC defende que esse poder passa a ser exclusivo do Presidente, o que coloca em risco a implantação de diversas políticas públicas definidas por lei, já que de nada adiantará ter um projeto se o executor responsável tem carta branca para fazer a seu gosto e forma. Um exemplo claro disso sãos as políticas na área da educação, ciências e tecnologia, políticas de afirmação de minorias (indígenas, pessoas com deficiência, etc). De que vale ter essas políticas construídas com ampla discussão na sociedade se o Presidente terá poder absoluto para deixar de implementá-las?
7 – Impactará, sim, os atuais servidores
Ao contrário do que afirma o Governo, a reforma administrativa impactará, sim, os atuais servidores públicos. Há normas de aplicabilidade imediata que afetarão diretamente os servidores públicos que ingressaram no serviço público antes da reforma como, por exemplo, a vedação ao aumento de remuneração com efeitos retroativos, férias limitadas a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano.
A extinção do Regime jurídico único também é um exemplo. Ocorrendo isso, diversas categorias serão postas em extinção, já que as contratações serão feitas por terceirizações, contratos temporários, etc. Resultado, não haverá mais reajustes ou valorização, de maneira que mesmo o aposentado terá os proventos congelados e consumidos pela inflação.
8- A reforma administrativa gera muita insegurança jurídica. É uma manobra legislativa.
A política deste governo, como se sabe, está marcada pela política de retrocesso social, agora dos servidores públicos através da reforma administrativa. Vários dos temas que hoje são previstos e abrigados pela Constituição Federal passarão a ser regulamentados por leis. O texto da reforma visa extinguir o regime jurídico único pelo regime de pessoal que contempla cinco espécies de vínculos jurídicos, dentre eles, o cargo típico de estado. Conudo, a reforma sequer conceitua o cargo típico de estado, termo muito controvertido na doutrina e na jurisprudência. Além de gerar insegurança jurídica, a falta de conceituação e a remissão à lei complementar deve ser vista com muito cuidado, pois revela uma estratégia para facilitar a aprovação da PEC. No aspecto do devido processo legislativo, é muito mais fácil propor e aprovar uma lei complementar do que uma emenda constitucional, por isso a estratégia de transferir do texto Constitucional o máximo possível de regras da organização administrativa à lei complementar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta de reforma administrativa apresentada pelo Governo Bolsonaro não busca a melhoria da Administração Pública, mas ao contrário privilegia a transferência dos recursos públicos para a iniciativa privada lucrar com serviços públicos essenciais. Isso é um terreno fértil para a corrupção, a política de apadrinhamento político, e reforça o caráter antidemocrático das contratações. Para além das questões que envolvem os princípios constitucionais democráticos, como visto, o objetivo principal do Governo, nesta reforma, é a implementação do Estado Mínimo que afetará diretamente a prestação de serviços públicos essenciais (saúde, educação, segurança, saneamento básico), aprofundando desigualdades sociais e dificultando o acesso à utilização dos serviços básicos à população que mais necessita.