A indisfarçável relação entre a MP de Bolsonaro que ataca as finanças dos sindicatos e a reforma da previdência
Por Francis Campos Bordas, advogado [1]
Tão logo divulgada na sexta-feira, véspera de carnaval, a Medida Provisória (MP) 873 editada pelo Presidente Bolsonaro passou a ser duramente criticada. A MP, em resumo, inviabiliza os descontos em folha de pagamento de mensalidades e contribuições aos sindicatos de trabalhadores dos setores público e privado.
As Medidas Provisórias são instrumentos legislativos postos à disposição do Presidente da República em situações de urgência que não comportam a tramitação normal de uma lei perante o Congresso Nacional. Ou seja, é indispensável que haja uma situação de emergência para que o Presidente “legisle” (art. 62 da CF).
Em consulta ao site do Câmara dos Deputados (aqui) não se encontrou a exposição dos motivos que levaram o Presidente à edição da MP. As contribuições e mensalidades em favor dos sindicatos estão previstas há muitos anos, tanto em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, como também normas internas (CLT, acordos coletivos, Regimes Jurídicos Únicos, etc). No caso do setor público federal, por exemplo, desde 1990 a Lei 8112/90 garante aos trabalhadores e sindicatos esta modalidade de desconto e repasse. Qual a urgência de mudar esta regra que já data de quase 30 anos? Por que justamente agora?
Não é necessário ser cientista político ou habituado ao dia-a-dia das tramitações legislativas no Congresso Nacional para perceber que há uma nítida relação entre esta MP e a proposta de reforma constitucional em curso. É de se esperar – e isto é típico do processo democrático – que a reforma previdenciária sofra grande resistência por parte da sociedade, sobretudo dos trabalhadores públicos e privados e de segurados dos regimes de previdência. Os exemplos de países que já usaram o modelo proposto (Chile, Hungria, Polônia, entre outros [2]) são muito bons para reflexão e debate justamente para compreendermos o que houve e, sobretudo, porque razão em todos estes países os modelos de capitalização simples foram alterados e até mesmo abandonados.
Aliás, é também importante analisarmos a conjuntura histórica, econômica e política em que tais experiências foram postas em prática, lembrando que, no caso chileno, o sistema foi imposto por meio de bala y sangre. E neste aspecto, chama-nos a atenção o alerta feito por Manuel Riesco Larraín, engenheiro e economista, consultor das nações unidas. Professor e diretor de universidades chilenas, fundador e vicepresidente do Centro de Estudios Nacionales de Desarollo Alternativo – CENDA.
Em sua obra Nueva previsión: para restituir el derecho a pensionies dignas em Chile [3], no qual define o sistema lá adotado (AFP – Administradora de fundos de pensiones):
El sistema está diseñado para que siempre opere deste modo. Es decir, para generar grandes masas de excedentes destinados al financiamento de grupos empresariales. Actualmente, por ejemplo, apesar que los aportes son más que suficientes, las AFP y los grandes grupos financieros vienen desarollando uma intensa campaña para incrementarlos aún más. Al mismo tempo, pretenden restringir los ya magros benefícios, retrasando la edad legal de jubiliación.
Também é previsível que setores ligados ao mercado financeiro tenham pressa de que a reforma passe rapidamente e, de preferência, sem discussão, dado que serão os grandes beneficiários do sistema de capitalização das contribuições dos trabalhadores (lembremos que o modelo proposto por Paulo Guedes e Bolsonaro equivale a uma poupança forçada cujo recolhimento é mensalmente descontado do trabalhador em favor de alguns conglomerados econômicos). Para que se tenha uma dimensão do tamanho da motivação do sistema financeiro (ressalvando que há muita diferença entre a realidade brasileira e a chilena), atualmente, no Chile, o valor dos depósitos em fundos privados de pensão equivale a cerca de 83% do PIB chileno, podendo chegar a 95% se considerados os valores geridos por seguradoras (aqui).
Como militar que foi, talvez o Presidente tenha pensando em aplicar a estratégia de cercar o inimigo e cortar o abastecimento de suprimentos. Deixar o inimigo enfraquecido, debilitado, fracionado a ponto de causar deserções, etc. Porém, uma estratégia como tal é manifestamente inconstitucional, tanto no seu procedimento (ausência de urgência que justifique uma Medida Provisória) como no seu conteúdo, pois:
– O contracheque e o vencimento são de propriedade do trabalhador, podendo ele dispor sobre os descontos que deseja fazer;
– Ao se filiar a um sindicato, o trabalhador autoriza este desconto, ou seja, ele manifesta sua liberdade de associar-se. Esta liberdade de associação não pode ser restringida por terceiros, principalmente – no caso do servidor federal – pelo próprio patrão (União);
– É vedada a intervenção estatal na organização sindical;
– A representação sindical deve ser protegida e não restringida (convenções 87 e 151 da OIT, dentre outras)
Por último, e não menos importante: a suspensão dos descontos sobre os salários, vencimentos e proventos de trabalhadores privados e públicos que espontaneamente se filiam a um sindicato representativo termina por privilegiar justamente os “sindicatos laranjas”, (normalmente sem trabalhadores filiados, ou filiados à força pelo próprio patrão) mas que agem a partir de uma “carta sindical” cuja concessão estatal, por vezes, é de duvidosa moralidade e legalidade[4].
Parece-nos, portanto, que a MP 873 se soma à série de “medidas de mordaça” do atual governo e sua base de apoio, que, tentando esvaziar financeiramente seus opositores e calar-lhes a boca, desvia o foco da gravidade da proposta de reforma previdenciária pretendida.
[1] Integrante do escritório BORDAS ADVOGADOS ASSOCIADOS, Porto Alegre, RS. O escritório é membro do CNASP – Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos. Integra a assessoria jurídica de entidades de servidores federais tais como ADUFRGS Sindical, ANTEFFA, FASUBRA, SINDAGRI/RS, SINDIEDUTEC/PR e ADUFG (em parceria com o escritório Eliomar Pires & Ivoneide Escher Advs Assoc., Goiânia, GO).
[2] BATISTA, Flavio Roberto. O modelo previdenciário multipilares e seu espaço de variabilidade: uma breve comparação entre modelos. In: A previdência social dos servidores públicos: direito, política e orçamento. BATISTA, Flavio Roberto e SILVA, Júlia Lenzi (organizadores). Curitiba, Kaygangue, 2018. Coordenação do Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos – CNASP, p. 127.
[3] LARRAIN, Manuel Riesco. Nueva previsión: para restituir el derecho a pensionies dignas em Chile, Santiago, Editorial USACH, 2014.
[4] Lembremos a operação da Polícia Federal alcunhada Registro Espúrio que culminou na denúncia feita em 2018 pela Procuradoria-Geral da República contra diversos agentes ligados ao Ministério do Trabalho nomeados depois do golpe que levou Temer ao poder e ligados a partidos políticos da base aliada à Bolsonaro.
https://www.cut.org.br/noticias/pgr-denuncia-26-por-fraude-em-registro-sindical-no-ministerio-do-trabalho-8bd3
agenciabrasil.ebc.com.br/…/pf-deflagra-operacao-para-investigar-fraude-no-ministeri…